Medicina Paliativa no Brasil: 10 anos de atuação

cuidados paliativos

A Organização Mundial de Saúde (OMS)1 definiu, pela primeira vez, o termo Cuidados Paliativos (CP) em 1990, para pacientes oncológicos “sem possibilidades terapêuticas de cura” à época. A partir daí o conceito foi ampliado em 2002 a qualquer doença ameaçadora da vida, em todo seu processo evolutivo, e não somente nas fases mais avançadas de terminalidade2.

A partir de 2014, a OMS3 qualificou esta prática de forma a que seus princípios de ação devessem ser norteadores de qualquer boa prática em saúde, levando a readequação da definição, por esta entidade, em 20174. A partir daí o conceito ampliou-se ainda mais envolvendo aspectos do cuidado ao ser humano em situações de sofrimento relacionado a condições de vulnerabilidade social e pandemias5. Em 2020, um grupo de especialistas congregados pela International Association of Hospice and Palliative Care (IAHPC) formulou a mais recente e abrangente definição envolvendo esta prática6.

Apesar das sucessivas e recentes reformulações da definição e do grande aumento do número de publicações científicas na área, o Cuidado Paliativo ainda é não reconhecido como uma especialidade médica de forma unânime nos diferentes países apesar dessa consciência já existir desde 1987, com início no Reino Unido7.

Cuidados Paliativos no Brasil

No Brasil, a prática de Cuidados Paliativos é descrita de forma pontual e a partir de iniciativas individuais desde a década de 808.

Em 1997, com a criação da Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), entidade de caráter multiprofissional e dirigida também desta forma, os profissionais envolvidos na prática começaram a se organizar e discutir sua ação e aspectos preliminares do chamado “Movimento Paliativista Brasileiro”.

 A partir daí, entendendo que a regulação da prática era necessária e que isto dependia de uma articulação com as entidades médicas do país, foi fundada em 26 de fevereiro de 2005 a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), associação composta por profissionais de saúde de várias profissões, mas dirigida apenas por médicos, requisito obrigatório à época para esta articulação.

 Isto permitiu maior visibilidade e inserção participativa na então recém-criada Câmara Técnica de Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esta, foi ativa na elaboração de importantes documentos como a resolução 1805/20069 e da primeira versão do Novo Código de Ética Médica (2009/2010), o primeiro a citar de forma textual no Princípio Fundamental número XXII e nos artigos 36 e 41, o termo “Cuidado Paliativo”. O texto foi mantido na íntegra na edição mais recente do Código de Ética Médica, de 201810.

Medicina Paliativa: uma nova área de atuação do médico

No Brasil, a inclusão de uma área de conhecimento como especialidade reconhecida é uma atividade processual e que envolve regras e pré-requisitos específicos regulados pelos órgãos médicos competentes, especialmente o CFM.

Como primeira providência, foi criada a Comissão Nacional de Medicina Paliativa (CNMP) pela Associação Médica Brasileira (AMB).

A primeira reunião da CNMP ocorreu em 30/03/2010 com representantes das especialidades médicas que mostraram interesse e entenderam ser a Medicina Paliativa uma possível nova área de atuação nas respectivas especialidades. A consulta aberta foi feita pela AMB, por carta, às Diretorias de todas associações de especialidades médicas reconhecidas pela entidade. As associações que se manifestaram positivamente foram:  Anestesiologia, Cancerologia, Clínica Médica, Geriatria, Medicina de Família e Comunidade e Pediatria além da própria ANCP.

Esta Comissão foi a responsável pela solicitação à Comissão Mista de Especialidades, constituída pelos colegiados do CFM e da AMB, a aprovação, em agosto de 2011, do pedido para que a Medicina Paliativa pudesse passar a integrar como mais uma área de atuação reconhecida no Brasil. Atualmente, a resolução 2221/201811, que homologa a portaria CME 01/2018, elenca no país a existência de 57 áreas de atuação do médico.

Em 18 de Maio 2012, pelo ofício OF/AMB/0117/2012, a AMB dá conhecimento às seis sociedades elencadas, da abertura do primeiro edital para seleção dos candidatos à titulação, por análise curricular. Exigiu-se para inscrição no processo que os candidatos tivessem experiência documentada na área de Medicina Paliativa por pelos menos 5 anos e que fossem titulados pela AMB em uma das áreas elencadas como pré-requisito na ocasião. Neste processo seletivo inicial foram titulados 45 médicos (20 anestesiologistas, 09 pediatras, 07 geriatras, 07 clínicos e 02 médicos de família).

A partir de 2013, mediante solicitação à AMB, a ANCP passou a fazer parte, com dois representantes, da banca responsável pela elaboração do exame de seleção de novos candidatos, agora por prova escrita e análise curricular, como pré-requisito para inscrição, juntamente com as seis sociedades que haviam participado do processo seletivo anterior. Neste ano a Comissão Nacional de Medicina Paliativa deliberou pela realização dos exames de suficiência para a área de Pediatria, separadamente. A partir deste momento o exame passou a ser realizado periodicamente pela AMB, segundo calendário da entidade.

O número de especialidades médicas consideradas como pré-requisito para obtenção do título aumentou de forma progressiva de tal sorte que hoje perfazem total de doze (Anestesiologia, Clínica Médica, Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Cirurgia Oncológica, Geriatria, Mastologia, Medicina de Família e Comunidade, Medicina Intensiva, Nefrologia, Neurologia, Oncologia Clínica e Pediatria). Até o ano de 2020, o Brasil conta com 338 profissionais médicos titulados pela AMB nesta área de atuação12.

Residência Médica em Medicina Paliativa

Como parte das providências exigidas para a regulamentação de uma nova área de atuação médica no Brasil foram elaboradas diretrizes norteadoras para o cadastramento de Programas de Residência Médica em Medicina Paliativa com duração de um ano adicional às residências das áreas pré-requisito já elencadas. Estas diretrizes orientaram as características dos programas e a distribuição de carga horária entre as diferentes modalidades assistenciais da Medicina Paliativa nos diversos cenários da prática médica devendo-se sempre ser planejado para apenas um ano.

A partir desta normativa iniciou-se o cadastramento dos programas junto ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) no ano de 2012. Atualmente, existem 17 programas de residência ativos no Brasil (apenas 1 em Medicina Paliativa Pediátrica) já tendo capacitado 148 médicos.

Medicina Paliativa como especialidade no Brasil

A Medicina Paliativa refere-se apenas ao conjunto de conhecimento relativo ao profissional médico. Por conceito, a adequada e competente aplicação da prática em Cuidados Paliativos exige uma organização e capacitação apropriada de todos os profissionais da área da saúde. Neste sentido, alguns conselhos representativos de diferentes profissões da saúde já começam a reconhecer, a partir de critérios próprios, que seus profissionais possam ser considerados especialistas ou terem área de atuação em Cuidados Paliativos.

No que diz respeito ao médico não se pode falar em especialidade profissional.  Medicina Paliativa é uma área de atuação para a qual, no Brasil, o candidato ao chamado “título” tem apenas duas opções: submeter-se a prova escrita elaborada pela AMB e divulgada mediante edital específico ou ter realizado um ano de Residência Médica em Medicina Paliativa num dos programas devidamente cadastrados e reconhecidos pelo MEC no país.

Entretanto, com a maior visibilidade e crescimento da área no país configurou-se, em consonância também com as normas do MEC13, uma alternativa de capacitação para qualquer profissional de saúde com o surgimento de cursos de pós graduação lato sensu na área. As normas se referem a capacitação presencial com no mínimo de 360h e certificadas por uma Instituição de Ensino Superior (IES) cadastrada no MEC. Em tempos de pandemia por Sars-Cov2 as mudanças para a modalidade de capacitação online, sejam em formato híbrido ao vivo ou EAD com aulas gravadas, estão sendo consideradas válidas pelo MEC desde haja respeito à carga horária mínima estabelecida e devidamente certificados por uma IES devidamente cadastrada.

Na modalidade de pós-graduação lato senso existem cursos de Especialização Médica e Multiprofissional em um número rapidamente crescente no Brasil14. Entretanto, é fundamental a compreensão de que estes cursos conferem ao profissional o título de Especialista Acadêmico, que não é reconhecido pela AMB e que, portanto, não se equivale a um título de Especialista Profissional, ainda não existente no país.

 Mais recentemente houve o reconhecimento pela AMB de que estes cursos de especialização e também cursos de aperfeiçoamento (para médicos), com duração mínima de um ano, possam ser computados de forma mais expressiva dentre os pré-requisitos exigidos para a inscrição no exame de suficiência para obtenção do título de área de atuação em Medicina Paliativa.

Medicina Paliativa como especialidade médica:  perspectivas

A partir da realidade da Medicina Paliativa como área de atuação do profissional médico no país, abre-se a perspectiva para o reconhecimento da área como especialidade médica.

Apesar desta já ser uma realidade em diversos países do mundo, a especialidade em Medicina Paliativa, encontra-se ainda em discussão no Brasil. Neste aspecto, vale o esclarecimento de que o conhecimento de Medicina Paliativa compreende um conjunto de preceitos e habilidades que todo o médico deve possuir, como parte da graduação, como ocorre com todas as outras especialidades médicas.

Entretanto, a evolução do conhecimento técnico-científico na área, o número crescente de publicações e eventos científicos em todo o mundo e o já existente reconhecimento no país, a partir da publicação do Código de Ética Médica de 2010, de que este conhecimento deve ser empregado no cuidado a doenças avançadas e terminais destaca a Medicina Paliativa como uma área própria e com exigência de um grande número de competências técnicas, procedimentais e atitudinais específicas dos profissionais.   

O reconhecimento desta situação e um compilado de competências específicas exigidas ao médico neste exercício profissional, que não possam ser contempladas em apenas um ano de residência, é de fundamental importância para o reconhecimento de que a Medicina Paliativa possui os requisitos para seu estabelecimento como uma nova especialidade médica no Brasil. Contribui para isto o recente estabelecimento da Resolução Ministerial 41/2018, de 31 de Outubro de 201815 e quatro Leis Estaduais16-19 que passam a fornecer as bases para o desenvolvimento de Políticas de Saúde específicas voltadas à adequada oferta de Cuidados Paliativos no Brasil em consonância com a organização do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em fevereiro de 2022, a Comissão Nacional de Residência Médica amplificou o tempo da residência em Medicina Paliativa para o período de dois anos, iniciando o processo de caracterização da prática como especialidade.

Dr. Ricardo Tavares de Carvalho, Médico Coordenador do Núcleo de Cuidados Paliativos do HCFMUSP. 

Referências

  1. Organização Pan-americana da Saúde. Câncer. Brasília, DF; 2020 [citado 12 dez. 2021]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/cancer
  2. World Health Organization. National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. ed. Geneva: WHO; 2002.
  3. World Health Organization. Strengthening of palliative care as a component of integrated treatment throughout the life course. Geneva: WHO; 2013. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/158962/
  4. World Health Organization. 10 facts on palliative care. Geneva: WHO; 2017 [citado 12 dez. 2021]. Disponível em: https://www.who.int/features/factfiles/palliative-care/en
  5. World Health Organization. Integrating palliative care and symptom relief into the response to humanitarian emergencies and crises: a WHO guide. Geneva: WHO; 2018 [citado 21 dez. 2021]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/274565/9789241514460-eng.pdf?ua=1
  6. Radbruch L, De Lima L, Knaul F, Wenk R, Ali Z, Bhatnaghar S, et al. Redefining Palliative Care-A New Consensus-Based Definition. J Pain Symptom Manage. 2020;60(4):754-764. doi: 10.1016/j.jpainsymman.2020.04.027
  7. Kirk Kate. The development of hospice and palliative care. In: Bruera, E, Higginson, I, Von Gutten, C, Morita, T. Textboolk of palliative medicine and suportive care. Oxfordshire: Taylor & Francis Group; 2021. p. 1-5.
  8. Figueiredo MGMCA: História dos Cuidados Paliativos no Brasil e no mundo. In: Castilho RK, Da Silva VCS, Pinto CS. Manual de Cuidados Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. 3. Ed. São Paulo: Atheneu; 2021. p. 7-10.
  9. Conselho Federal de Medicina: Resolução CFM 1805/2006. Brasília, DF; 2006 [citado 10 jan. 2022]. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=PesquisaLegislacao&dif=s&ficha=1&id=6640&tipo=RESOLU%C7%C3O&orgao=Conselho%20Federal%20de%20Medicina&numero=1805&situacao=VIGENTE&data=09-11-2006/
  10. Conselho Federal de Medicina. Novo Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217 de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções nº 2.222/2018 e 2.226/2019. Brasília, DF; 2019 [citado 21 dez. 2021]. Disponível em https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf
  11. Entidades de Fiscalização do Exercício das Profissões Liberais/Conselho Federal de Medicina. Resolução 2221/2018. Brasília, DF; 2019 [citado 14 dez. 2021].